A facilidade de uso atrapalha a aprendizagem e a criatividade?

Por que nem sempre o caminho mais fácil é a melhor escolha quando se está criando e aprendendo.

Yan Vancelis
5 min readDec 31, 2018
Jack White fazendo uma Guitarra em meio as vacas

A tecnologia é o grande inimigo da emoção e da verdade. Ter uma possibilidade não ajuda a criatividade em nada, ela facilita, sim, dá para ir mais cedo para casa, mas não faz de você uma pessoa mais criativa. Essa é a doença que precisa ser combatida em qualquer área de atuação: A facilidade de uso. — Jack White

Desde quando assisti o ‘A todo volume’, essas palavras de Jack White ficaram na minha cabeça. No documentário, que reúne três guitarristas, incluindo ele, Jimmy Page (do Led Zeppelin) e The Edge (U2), Jack White inicia sua participação no que parece ser um quintal, e em meio as vagas que ali pastam, ele cria sua própria guitarra, no melhor estilo ~gambiarra~ faça você mesmo. Toda a cena inicial da sua participação se dá na explanação deste raciocínio. Fique a vontade para assistir, vale a pena.

Não nego que por muito tempo eu concordei veementemente com esse raciocínio. Sempre acreditei que, se o meu objetivo era dominar uma coisa, eu deveria ir pelo caminho mais difícil, afim de ganhar “casca” com as dificuldades e me tornar um profissional muito melhor por isso. E mesmo (vários) anos depois, com algumas ressalvas, continuo concordando muito com esse método. O contexto da frase de Jack White é a produção artística, no caso a musical, mas é possível fazer um paralelo a várias outras atividades que realizamos no nosso dia a dia.

Uma geração de arrastadores de mouse

O termo “arrastadores de mouse” é do Júlio Neves, o famoso ‘pai do Shell’, se referindo a usuários Windows.

Sou usuário GNU/Linux há muitos anos e sempre vi pessoas torcerem o nariz para uma tela de comandos. Eu sempre fui um fuçador e na primeira oportunidade que tive, deixei de usar o Windows em opção ao Linux. Obviamente, eu queria trabalhar na área de TI e sempre era aconselhado a aprender Linux, um “sistema de verdade”.

De início, como tudo que é novo, foi difícil. Nunca esqueço da primeira vez que tive que abrir um arquivo .rar e o Ubuntu, apesar de ter um descompactador pré-instalado no sistema, não possuía o plugin instalado. Isso me fez ir pesquisar e descobrir uma coisa chamada console: Sim, existia vida além da interface gráfica. Aí, meus amigos, veio o primeiro apt-get e não parei mais. Hoje em dia, quando eu preciso converter arquivos.jpg brutos com 20mb cada em uma pasta, eu posso simplesmente abrir um terminal e sapecar:

$ mogrify -quality 70 *jpg

e como mágica, meus arquivos serão diminuídos para média de 1mb cada, mantendo 70% da qualidade. Louvado sejam os programadores que escreveram esse programa. Esse gif que tá no início do texto eu mesmo fiz usando Kdenlive, mas antes eu baixei o vídeo do Youtube usando o comando:

$ youtube-dl https://www.youtube.com/watch?v=yZ7DZ7HPXck

Se eu não tivesse saído da minha zona de conforto, jamais teria aprendido sobre isso e provavelmente, para realizar essas mesmas tarefas, eu teria que ter baixado programas, arrastado o mouse por quilômetros e, após alguns cliques, conseguir o que eu queria. De início, talvez não seja fácil e demore um pouco mais, mas a longo prazo, aprender algo novo e mais eficiente faz você ir mais cedo pra casa, e esse tempo não é perdido: Nas pesquisas, você aprenderá muito mais. Aqui, eu comentei sobre outros meios de realizar tarefas num computador. Agora, vou falar um puco de criação.

Manual Vs. Digital

Artes com pontos e retas. Veja os resultados aqui. (Peguei emprestado os dedinhos da Késsia)

Nunca fui um grande apreciador do manual. Cresci no meio digital e, inicialmente, nunca pensei que fosse me tornar um designer, muito menos frequentar um curso superior de Design. Eis que me pego este ano tendo que realizar várias atividades manuais, desde o desenho ao trabalho com formas, captura de textura…tudo no papel.

E confesso que não foi fácil. Trabalhar com pontilhismo, por exemplo, é um processo demorado, fácil de borrar e fazer você perder tudo, sendo que é absurdamente fácil fazer isso no digital. E foi assim durante todo o semestre, mas como a maior parte das boas cadeiras da universidade, o real significado daquilo me veio depois.

Lidar com o manual faz você perceber o processo de criação por outra ótica. Você não está apenas executando uma rotina de um software, você precisa pensar muito mais para realizar um determinada ação na sua peça, enxergar o melhor método possível para representar o que você quer. É literalmente mergulhar no universo do que você está criando, e acredite, isso muda a sua visão do processo, mesmo em trabalhos digitais.

O mesmo processo, via Inkscape

Não aprenda funções. Aprenda processos.

Nos últimos tempos, muitos softwares tem trazido muitas funções “mágicas” para determinadas ações que tornam tudo “mais prático”. Ok, as vezes isso quebra um galho, mas e se um dia eu precisar fazer aquela tarefa e não ter aquele botão a minha disposição? Numa empresa onde a versão do software é mais antiga, o que é bem comum quando se trata de produtos licenciados? Eu preciso conhecer o processo para chegar aquele resultado.

Seja qual programa que você usar, busque compreender o processo. Como no caso do Linux, no início talvez você “perda tempo” aprendendo a fazer certas coisas, mas depois você será uma pessoa/profissional muito mais preparado e, por tabela, mais criativo. É como fotografar no manual: De início vai ser difícil se acostumar a adaptar as configurações da sua câmera ao ambiente, mas depois de um tempo, você conseguirá tirar o melhor que seu equipamento tem a oferecer.

No fim, não se trata de abolir a facilidade de uso, obviamente, ela é necessária e permitiu incluir a grande maioria das pessoas nesse mundão digital, e mesmo que uma parte deles use pra compartilhar fake news, não é por isso que irei deixar de exaltar a Inclusão Digital e a acessibilidade das ferramentas. Mas para nós criadores, sejam designers ou programadores, certas experiências e hábitos nos ajudarão a realizar trabalhos muito melhores.

Feliz 1964, ops…2019!

  1. Eu ia escrever um pouco sobre programação, mas eu queria soltar esse texto ainda em 2018, então, fica pra uma próxima vez.
  2. O meu texto sobre que linguagens de programação escolher pra começar dialoga um pouquinho com esse texto.
  3. As lições da parte do “Manual Vs. Digital” foram tiradas da disciplina de Comunicação Visual.

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